"A Sérvia deve ser uma só, sem lutas"

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Éo fim de uma era!". Miljana Jovanovic, uma das principais activistas do movimento Otpor (Resistência), crucial na queda de Slobodan Milosevic a 5 de Outubro de 2000, fala de um final "absurdo". Anteontem, o seu telemóvel não parava de tocar. Jornalistas, amigos e políticos queriam ouvi-la sobre a notícia que chegara de Haia. "Não aguentei a loucura mediática". Num ápice, ele estava de volta, "foi como se toda a atenção voltasse a estar em Milosevic".

Miljana sente-se "profundamente lixada, porque ele morreu assim, dormindo lentamente para o lugar de mártir". Porque alguns sérvios, mesmo que não a maioria, "vão fazer dele um mártir", repete. Aquilo que a irritou foi o ensaio geral mediático do funeral, este fim-de-semana: a maioria das televisões e jornais da Sérvia mostraram Milosevic quase como uma vítima e "quando alguém é visto assim, há uma tendência para esquecer, para perdoar".

Miljana deu "a melhor parte da vida a lutar contra ele". Ela não perdoa e só as vítimas têm o direito de perdoar. Esta estudante de literatura de 31 anos confessa que "é difícil ouvir que um ser humano morreu numa cela", mesmo que tenha sido Slobodan Milosevic.

E o futuro? Que nova resistência quando, como lembra Miljana, o partido radical (do ultra-nacionalista Vojislav Seljselj, preso em Haia) se aproxima da fasquia dos 40% em algumas sondagens? "Não tenho uma imagem sólida, mas agora sabemos que há eleições de quatro em quatro anos, num contexto minimamente livre", resigna-se, como se essa fosse uma das poucas vitórias da "revolução" de 5 de Outubro.

"Os governos democráticos nunca explicaram aos sérvios porque estava Milosevic em Haia". Nos últimos anos, avisa Miljana, "tem existido um certo renascimento escondido do nacionalismo". Para ela, "é degradante ver o Governo de Vojislav Kostunica preso no Parlamento aos socialistas de Milosevic para poder aprovar decisões".

O futuro, conclui esta antiga líder estudantil, vai ser o último "baloiço entre as duas Sérvias". Miljana Jovanovic que "nunca teve sonhos perfeitos" afirma, apesar de tudo, que sente estar a aproximar-se o dia de uma só Sérvia. "Morreu Milosevic, o Kosovo e o Montenegro vão resolver-se este ano ou no próximo. É o fim de uma era!"

Duas Sérvias

Mas ainda foram as duas Sérvias que se cruzaram nos principais noticiários televisivos da noite. A abertura focou as comemorações do terceiro aniversario da morte de Zoran Djindjic, o primeiro-ministro assassinado a 12 de Março de 2003. Ao longo do dia, vários milhares de pessoas fizeram fila na Aleja Velikana (a avenida dos "grandes"), num dos principais cemitérios de Belgrado, para homenagearem aquele que foi talvez o maior adversário político de Milosevic.

Num outro lugar, no centro da cidade, algumas centenas de pessoas assinavam o livro de condolências de Milosevic, na sede do Partido Socialista da Sérvia. Protegida pelo guarda-chuva, Biljana Besic está no fim da fila para "mostrar respeito a um homem que foi Presidente de um país". E quase não é preciso fazer perguntas.

Apesar do luto que veste, ela quer falar: "Este é um momento trágico e um grande embaraço para o mundo. Democracia não é forçar alguém a fazer uma determinada coisa. Milosevic é um líder histórico que fez muitas coisas por muitas pessoas. Eu tinha um país. Agora, não tenho" exclama, numa referência à desintegração da antiga Jugoslávia (de que Milosevic foi, para muitos historiadores, o principal coveiro).

Na casa dos 50 anos, Biljana é uma das pessoas mais jovens que esperam pela sua vez para depois das velas, das rosas, dos cravos e das mensagens afixadas na parede (como "Haia matou Milosevic"), escrever as últimas palavras do passado.

Biljana e Miljana estão ambas na fila do futuro, na sombra de Milosevic, à espera de um líder que ocupe o lugar do assassinado Djindjic. Pelo menos numa coisa elas estão de acordo: "A Sérvia deve ser uma só, sem lutas".

* Jornalista da TSF

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